28 de out. de 2013

“O clube da Fotografia”: uma proposta de ensino



 A fotografia em nosso cotidiano, está diretamente associada ao desenvolvimento tecnológico das técnicas de reprodução de imagem, uma questão sociológica que se impõe as reflexões sobre a “imagem de si” produzida no decorrer do século XX e que universalmente está diretamente enraizada na história da arte e suas tecnologias. Sendo assim, a proposta de analisar as imagens que povoam os arquivos visuais deste universo cultural, colocou os jovens envolvidos com o projeto de pesquisa em contato com o cotidiano histórico-cultural gerador destas imagens fotográficas, assim como possibilitou à prática pedagógica um estudo aproximado das representações sociais estruturadas nos padrões icônicos registrados nos temas das fotografias.

 O trabalho foi realizado com alunos entre 14 a 17 anos de idade. A pesquisa no primeiro momento envolveu em média 20 famílias, e a proximidade social e cultural entre os grupos familiares envolvidos, favoreceu a padronização dos conjuntos compositivos das imagens, assim como a ampliação gradual dos temas propostos . Para este estudo, organizou-se reuniões quinzenais do grupo de pesquisa dentro do próprio período de aulas dos alunos – o que facilitou a organização do grupo. Nestas reuniões a fotografia foi apresentada aos alunos como representação social, coordenadas em um conjunto de questionamentos que levaram em consideração o seu agente produtor, e consequentemente os sentidos sociais atribuídos por estes à fotografia.

 Esta proposta objetivou possibilitar ao jovem estudante, uma melhor compreensão sociocultural do retrato doméstico, e suas variações interpretativas. Foi proposto como prática de pesquisa, que os alunos se focassem nos elementos apreensíveis na composição visual, um exercício de relacionar a forma ao sentido sociocultural constituidor das imagens fotográficas, e consequentemente, as suas mensagens visuais. A atividade de pesquisa se estruturou a partir de três níveis de observação:

 • Elementos históricos das imagens fotográficas: consiste em periodizar a imagem, localiza-la no tempo mnemônico de seus proprietários;
 • Elementos icônicos das imagens fotográficas: aspectos da composição; pessoas representadas, valores discursivos das imagens; aspectos técnicos de sua realização; acessibilidade ao recurso tecnológico; aspectos plásticos das fotografias;
 • Conhecimento produzido acerca da presença da imagem nos núcleos familiares e características sociais da família em sua construção histórica: história familiar; mobilidade social;

 Pelo próprio objetivo do projeto de pesquisa (o de se constituir um acervo visual de história local), apesar do amplo campo de discussão que se abriu com os levantamentos de imagens realizados pelos estudantes, optou-se por abordar apenas os referenciais icônicos das imagens fotográficas e os padrões de representações que estes suscitam em seu trato. Assim como as perspectivas pedagógicas e seus respectivos resultados, na abordagem de uma história visual do retrato doméstico.

Sendo assim, ao se tratar da “imagem de si”, ou seja, a construção social de uma representação de si no evento, ou a imagem como legitimador de pertença ao grupo, ainda, se está aludindo às operações mentais, individuais ou coletivas que estruturam os aspectos construtivos e identitários da representação. Todos compreendem que se trata de estudar ou provocar associações mentais sistemáticas (...) que servem para identificar este ou aquele objeto, esta ou aquela pessoa, esta ou aquela profissão, atribuindo-lhes um certo número de qualidades socioculturalmente elaboradas (JOLY, 2008, p. 21).   Para Martine Joly, ao se abordar ou estudar certos fenômenos em seu aspecto semiótico deve-se considerar o seu “modo de produção de sentido”, ou seja, a forma como provocam significações, isto é interpretações.

 É este estimulo interpretativo que constitui a condição icônica da imagem, ou seja, o seu valor social enquanto signo. Este consciência interpretativa por analogia, coloca a imagem na categoria de representações,  possibilita a verbalização dos referenciais icônicos e plásticos, uma etapa de sistematização na análise da imagem fotográfica aparentemente simples, todavia, capital, pois constitui a transcodificação das percepções visuais para a linguagem verbal.

Sendo assim, metodologicamente, dividimos o a ação de pesquisa do aluno em três etapas:

• 1ª. Etapa: contato com as imagens fotográficas – neste momento inicia-se o aluno no reconhecimento e sensibilização dos elementos físicos e imagéticos que compõem a fotografia;
• 2ª. etapa: levantamento de imagens e entrevistas: esta etapa é o momento em que o aluno se aventura em entrevistas. Esta fase é dividia em um momento de apresentação e preparação do aluno para abordagem e entrevista dos proprietários das fotografias. Nesta ação temos um primeiro movimento dentro do espaço doméstico e um segundo movimento junto aos vizinhos ou parentes mais próximos do aluno;
• 3ª. Etapa: análise de imagem e sistematização de dados. Corresponde a fase de catalogação da imagem para o arquivo do projeto. Nesta etapa as imagens são analisadas dentro de dois quadros de análise, digitalizadas e classificadas;

 Considerando estas etapas entre a preparação do aluno para a pesquisa em campo, os levantamentos e as análises e catalogações de imagens. A primeira etapa do processo de análise de imagem, pedagogicamente, tem a sua importância justamente na vivência da imagem enquanto elemento físico e cultural. O que resulta em um conjunto heterogêneo de análises, revelando as parcialidades da análise descritiva. Neste sentido, para maior aproximação e exatidão dos referenciais levantados pelos alunos na análise da imagem, deve-se projetar a atividade em grupo. Este ponto revela dentro do grupo, os limites entre as leituras pessoais e coletivas da imagem.

  Propôs-se com isto o aspecto questionador do pesquisador frente à imagem fotográfica, dando margem aos alunos para inserirem seus próprios questionamentos, além da proposta de roteiro. As questões se limitaram a três indagações básicas: onde? Quem (é) são? Quem fez? A relevância desta atividade descritiva da imagem é revelar o percebido pelos alunos, o elemento cultural manifesto na ação individual da leitura. A nomeação de semelhanças que revelam “unidades culturais”, determinadas pelo olhar cultural, definidor de hábitos que estruturam seus olhares sobre o mundo. Esta condição cultural do olhar refletiu na prática pedagógica, como um diálogo pautado em três pontos de abordagem: o da imagem enquanto produto histórico-cultural, presa a sua condição física de produção; a ação de elemento icônico indiciário manifestado a partir de sua relação com seus agentes produtores (proprietários) que direta ou indiretamente reconstrói o sentido social da composição fotográfica; e por último, a leitura do aluno acerca destes dois referentes.

 Esta prática descritiva se repetiu ao longo de todo o processo de levantamento e análise das fotografias, direcionando a abordagem fotográfica, para o plano discursivo que transcende as suas condições técnicas e estéticas. Sendo assim, é a fase de catalogação das imagens que envolve o exercício de classificação e descrição, nos quais os padrões icônicos levantados nos grupos temáticos, possibilitou a sua leitura como “sociogramas leigos ” registros visuais que refletem no grupo social, suas relações e papéis sociais. Na prática, esta abordagem corresponde à possibilidade de definição temática e periodização da imagem fotográfica, tal como aponta Mauad (1996) e Gejão . Para as autoras, a pesquisa histórica que se vale da fotografia como fonte de estudos deve ser dividida em grupos temáticos (cenas familiares, eventos sociais, políticos, crianças, trabalhos entre outros), ou fontes de produção (família, Estado, imprensa), compondo séries, ou corpus de análise, no sentido de possibilitar a reflexão sobre semelhanças e diferenças próprias ao conjunto de imagens selecionadas.

 Durante os levantamentos de pesquisa do projeto, a fotografia foi trabalhada em séries temáticas, a princípio quatro temas: batizado, casamento, fotografias de romarias e fotografias sobre o espaço urbano e rural, que deveriam ser analisados e comparados em seu corpus visual. Sendo assim houve uma divisão destes temas em períodos que comportavam de início três décadas: 1950, 1960 e 1970, o que se revelou insuficiente frente a grande variedade temas e períodos que foram apresentados pelos alunos ao longo da pesquisa. Em vista do levantamento apresentado, abriram-se as delimitações temáticas aos novos temas que surgiram a partir dos levantamentos, valorizando a dinamicidade da pesquisa, expandiu-se suas margens temporais, utilizando como referencial de análise a comparação do mesmo tema registrado dentro de uma variação temporal ampliada. A perspectiva de análise da imagem fotográfica como um “sociograma leigo”, possibilitou no conjunto referencial de sistematização, a visualização de uma lógica estética pautada em elementos simbólicos (desde o evento e os elementos físicos que o compõem) de um imaginário social legitimador.

 Neste primeiro momento da pesquisa foram levantadas e catalogadas 223 imagens fotográficas em 14 categorias temáticas e com 5 subdivisões de períodos (1900, 1930, 1950, 1960 e 1970) . Não diferente de outro estudo da mesma natureza que realizamos com um grupo maior de alunos de escolas públicas em 2009 , a presença das imagens nestas famílias apresentou uma hierarquia visual em seus acervos. Retratos de reunião familiar (retratos de família), casamentos e viagens (na grande maioria romarias à Aparecida do Norte-SP), predominam sobre os demais temas. Acerca destes temas, é o caráter afetivo do evento (no caso das reuniões familiares), a legitimação física da memória do tempo da viagem (retratos de viagens e romarias), e a honra social frente ao poder legitimador do evento (retratos de casamento), as razões sociais que justificam a sua ampla presença nestes documentos visuais da memória familiar. Neste sentido, é o evento que torna possível e necessária a imagem fotográfica, “(...) essas imagens captam comportamentos que são socialmente aceitos e socialmente regulados, ou seja, já solenizados. Nada além do que deve ser fotografado pode ser fotografado” (BOURDIEU, P. e BOURDIEU, M., 2006, p. 34).

Estes temas estão diretamente associados à vida doméstica dos agentes, assim como a representação que estas famílias constroem de si, na ordem de sua rede sociabilidade.

 O aluno em campo

 O contato com as imagens fotográficas por si só tem suas limitações interpretativas, como ocorre em toda fonte histórica, porém, o cruzamento destas fontes com o depoimento de seus proprietários dinamizou as possibilidades de penetração dos alunos dentro do período histórico-cultural gerador da fotografia. Tal abordagem foi orientada por um roteiro de entrevista, constantemente retomado nas reuniões:


  •  Dados pessoais do proprietário 
  • Periodização da fotografia 
  • Elementos mnemônicos e afetivos da imagem fotográfica 
  • Referenciais sociológicos da prática fotográfica
 As ferramentas de coleta das entrevistas foram as mais próximas possíveis do cotidiano dos alunos: MP3, MP4, celulares, além das entrevistas manuscritas. Estes equipamentos deram origem a entrevistas curtas com tempo de duração entre dois e oito minutos. Estas entrevistas ao retornarem quinzenalmente para o grupo, foram analisadas coletivamente com o objetivo de se comparar os avanços e as falhas nas abordagens. Nestas entrevistas percebe-se que os níveis de maior constrangimento na ação mnemônica residiam nos agentes mais próximos aos alunos (pais, mães e em alguns casos os avós). Enquanto que os grupos externos a estes se apresentaram com maior naturalidade e flexibilidade aos questionamentos das entrevistas, disponibilizando até um número maior de documentos para a pesquisa (como cartas, álbuns de família, certidões de batizado e casamento entre outros objetos).

 Neste processo de coletas de imagens fotográficas e entrevistas, o maior problema operacional entre os alunos foi manifestado no momento de transcrição das entrevistas, muitas vezes fugindo para sínteses das falas, e assim não preservando a fidelidade do depoimento. Elemento constantemente evidenciado na confrontação do áudio com a transcrição. A composição discursiva: confrontação de fotografia e entrevista As entrevistas sobre as imagens fotográficas possibilitaram penetrações diferentes na reconstrução do passado destes agentes, assim como as intencionalidades discursivas sobre o presente tendo como pano de fundo a imagem materializada do passado no corpo fotográfico. Janaina Amado (2002)  ao se referir a esta perspectiva em relação aos relatos orais, atenta para o fato de estes englobarem explicitamente a experiência subjetiva dos agentes sociais, revelando heranças culturais num processo de reconstrução do passado a partir de um lugar presente que estrutura a narrativa.

BOURDIEU, Pierre ; BOURDIEU, Marie-Claire. O camponês e a fotografia. In: Revista de Sociologia Política. Curitiba, fascículo 26, p. 31-39, junho de 2006.

JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas, Papirus Editora, 2008.

 AMADO, Janaina e FERREIRA, Marieta M. (orgs.). Usos e abusos da história oral. [5ª. edição], Rio de Janeiro, Editora FGV, 2002.  

GEJÃO, Natália. A fotografia como mediador cultural na construção do conhecimento histórico escolar. In: Revista Antíteses. Londrina, volume 2, número 3, janeiro-junho de 2009, pp. 257-267.


MAUAD, Ana Maria. “Através da Imagem: Fotografia e História – Interfaces”. In: Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 1, n° 2, 1996, p.73-98.



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